“O CONTO DA AIA” E A DISTOPIA BOLSONARISTA
Alguns anos atrás, um dos candidatos
ao governo do estado do Rio Grande do Sul, Ivo Sartori (do MDB) foi questionado
sobre como ele procederia com relação ao Piso Nacional dos professores, como
resposta Sartori afirmou “Quem quer piso deve ira ao Tumelero”. Tumelero, uma
importante rede de materiais de construção, recebeu uma importante propaganda gratuita do emedebista. E muitos defenderam Sartori afirmando que ele estava só brincando.
Quatro anos depois, Sartori não
seria reeleito e deixaria o governo gaúcho. Durante este período os professores
da rede estadual não receberam nenhum aumento salarial, nem sequer reposição da
inflação, e o salário base não chegou nem perto do Piso Nacional, ao contrário,
aproximou-se, e muito, do salário mínimo. Infelizmente não havia brincadeira
nenhuma nas palavras de Sartori.
Mas minha intenção neste texto
não é falar sobre Sartori. Prefiro escrever sobre ficção, na verdade, uma ficção
das boas. Por isso, vou escrever sobre uma série que está na terceira temporada:
The Handmaid’s Tale ou, em português, O Conto da Aia. Série
baseado no livro homônimo de Margareth Atwood. Por sinal, um grande livro, que
contrariando a regra de que “o livro é melhor que o filme”, a série consegue a
proeza de ser melhor que o livro.
O Conto da Aia é uma
distopia. Distopias são um subgênero muito popular da ficção-científica e são o
oposto das utopias, isto é, se uma utopia é um mundo futuro perfeito, as
distopias são realidades futuras terríveis. Como ouvi certa vez, “as distopias
são as utopias que não deram certo”. E O Conto da Aia é um destes casos.
Em O Conto da Aia somos
apresentados a uma sociedade norte-americana distópica. Na trama, a maior parte
dos seres humanos se tornaram inférteis. Sem ter certeza dos motivos que
levaram ao despencar das taxas de natalidade, alguns grupos afirmam que o
problema é resultado da crescente poluição, outros culpam as doenças venéreas.
Em meio a uma sociedade em colapso,
o governo dos Estados Unidos cai, abrindo brecha para que um novo governo se instalasse.
Os Filhos de Jacó, partido religioso ultra-conservador, toma o comando da
nação, mudando até o nome do país para República de Gilead.
Entre as primeiras medidas do
novo governo está a retirada de todos os direitos civis e políticos das mulheres.
Somente os homens poderiam circular livres pelas ruas. Segundo os Filhos de
Jacó, a medida era para proteger as mulheres do que quer que estivesse causando
a infertilidade delas, já que para os religiosos, a infertilidade atingia
somente às mulheres.
Mas o que choca não é isso.
Em decorrência da baixa
fertilidade, mulheres férteis acabaram sendo escravizadas e entregues aos
líderes do partido radical-religioso que estava no poder, objetivo: dar filhos
aos líderes do governo. Tudo isso ocorrendo com a participação das esposas
destes homens. As aias, como foram chamadas as escravas de procriação, passaram
a ser constantemente estupradas em cerimônias religiosas realizadas nas casas
em que estavam aprisionadas.
Para piorar, após darem à luz, elas
eram separadas dos filhos e entregues a outra “família” para novamente serem
estupradas, num ciclo que duraria todo o seu tempo de fertilidade.
Entretanto, a distopia apresentada
em O Conto da Aia não foi algo que foi imposto da noite para o dia. Pelo
contrário, conforme a trama nos apresenta revelações sobre o passado, entendemos
que as pequenas mudanças que foram sendo impostas à sociedade norte-americana ocorreram
de forma bastante gradual. Sem que a maioria das pessoas se dessem conta do que
estava acontecendo, mudanças sociais foram sendo colocadas em prática.
Por esse motivo, ninguém pensou
em fugir. Ninguém desconfiou das más intenções do partido Filhos de Jacó.
Na verdade, conforme as coisas
aconteciam, muitas pessoas achavam graça ou até gostavam das propostas do novo
governo. Como quando as mulheres foram proibidas de acessar suas contas
bancárias, só os maridos poderiam manipular as contas. Com isso, mulheres
solteiras ou viúvas tiveram suas contas bloqueadas. Mesmo assim, muitas pessoas
mantiveram o apoio ao novo governo.
Claro que quando a “corda apertou
pra todos” era tarde demais.
É impressionante como nós somente
percebemos o problema quando ele nos atinge.
Com exceção dos membros do
partido no poder, todos os demais perderam os seus direitos civis e políticos.
Milhares de pessoas foram enviadas à campos de trabalhos forçados. E, como já vimos,
as mulheres férteis tornando-se escravas sexuais.
Não vou revelar mais nada sobre a
série, mas se você ficou curioso, te garanto, The Handmaid’s Tale (O
Conto da Aia) é uma série imperdível que deveria ser assistida por todas as
pessoas. Só para se ter uma ideia da qualidade da série, o programa já venceu
dezenas de prêmios, entre eles estão 8 Emmys Awards e 2 Globos de
Ouro.
Por que escrevo sobre esse
assunto?
Por que eu acredito que já
estamos vivendo numa distopia.
Mas que fique claro: eu não
acredito que estejamos indo na direção da distopia apresentada em O Conto da
Aia. Nosso problema é diferente, mas com resultados tão desastrosos quando
os da série.
Você já ouviu algum pronunciamento
de Jair Bolsonaro (ou de algum de seus ministros)? Já ouviu as ideias que eles
têm sobre Meio Ambiente, Educação, Saúde, Segurança, Armamentos, Transporte,
Sexo... A maioria das afirmações, se não fossem assustadoras, pareceriam piada.
E muito dizem: “ele tá brincando”. Brincando? De quê? De ser presidente? Eu é que
não quero participar dessa brincadeira!!!
Tipo quando ele debochou da primeira
dama francesa, Brigitte Macron. Muitos afirmaram que era brincadeira.
Brincadeira? Com o quê? Com a aparência ou com a idade dela? Não entendo onde está
a brincadeira!!! Por isso te pergunto: e se fosse contigo? Ou com a tua esposa?
Ou com a tua mãe? Ou quem sabe, com tua filha?
Se quisermos avançar na direção
inversa de uma distopia, precisamos urgentemente nos tornarmos mais empáticos
e menos “engraçados”.
Por isso, comecei com a história
do piso no Tumelero. Onde não havia piada nenhuma sendo contada.
Não sei se sou só eu, mas tá
dando uma forte vontade de sentar num cordão de calçada qualquer... e chorar...
Marcos Faber
Professor de História
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