Será
que somos como os siris?
Marcos Faber - 08/05/2018
Quando
eu era criança tive algumas experiências que levarei para a vida toda. Uma
delas, foi quando eu e minha prima passávamos alguns dias na casa da praia de nossa
avó. A vó Kika tinha uma bela casa de veraneio localizada em Imbé, litoral
norte do Rio Grande do Sul.
Naquela
ocasião eu e minha prima brincávamos na garagem da casa, ao revirávamos os
entulhos lá guardados, encontramos um estranho instrumento utilizado para
“pescar” siri, ou seria “caçar” siri?... vai saber.
Não
tivemos dúvidas, de bicicleta fomos até o rio Tramandaí com o objetivo de pescar.
E, por incrível que possa parecer, tivemos um grande sucesso utilizando aquele
estranho instrumento. Com o balde recheado de uma boa quantidade de crustáceos
voltamos pra casa.
Com
grande satisfação nos rostos mostramos pra vó o resultado de nossa aventura. Mas
mal sabíamos a experiência que nos aguardava.
A
vó Kika colocou os siris na água morna que estava no fogão. Os siris estavam
vivos e, inicialmente, pareciam não se importar com a quentura da água. Gradualmente
a temperatura foi sendo elevada, até que a água ferveu. Foi então que os siris
começaram a pular, saltar como pipoca contra a tampa e as laterais da panela. Faziam
um barulhão. Eu e minha prima ficamos muito assustados. Pedíamos para dona Kika
desligar o fogo. Queríamos devolver os pobres crustáceos ao mar.
Mas
minha vó insistiu... disse que era assim mesmo. Segundo ela, eles nem sentiam
dor...
Não
fomos convencidos! Mas o desejo da vó Kika de devorar aqueles bichinhos foi
mais forte do que nossos apelos.
Quando
estava na faculdade também fui marcado por algumas experiências que levarei
para toda a vida. Uma delas ocorreu durante um congresso sobre a História do
Holocausto e da Shoáh. Durante o evento, fui fortemente impactado pelo testemunho
de um judeu polonês que sobreviveu aos campos de concentração nazista.
Todos
ficaram atordoados pelos terríveis eventos vividos pela testemunha. O que mais
chocava era perceber que tudo acontecera aos poucos. Primeiro os judeus perderam
os direitos civis, depois perderam o emprego. Pouco tempo passou para que
fossem enviados aos guetos e, por fim, levados aos campos de concentração e de
extermínio.
Quando
perguntas foram autorizadas, uma pessoa perguntou: “Por que o senhor e sua família não fugiram assim que as tropas de
Hitler invadiram a Polônia”.
A
resposta foi surpreendente: “Não fazíamos
ideia do que viria pela frente. Ouvíamos boatos sobre os campos de
concentração, sobre o fuzilamento de judeus... Muitos fugiram. Mas era difícil
largar tudo o que tínhamos e partir para outro país. Nem todos tinham condições
econômicas de fugir... E, mesmo assim, a maioria só entendeu o que estava
acontecendo quando já era tarde demais...”
Não
me entendam mal, não estou comparado a panela de siris com o que aconteceu nos
campos de extermínio. Muito pelo contrário. Pois tenho um enorme respeito pela
memória das vítimas da Segunda Guerra, especialmente, o povo judeu.
O
que estou tentando fazer é refletir sobre o que está acontecendo em nosso país,
principalmente nestes últimos três anos.
Pois
calados (pelo menos a maioria de nós) presenciamos um golpe de Estado que depôs
uma presidente democraticamente eleita. Em silêncio aceitamos uma reforma
trabalhista cruel, da qual sentiremos em breve as consequências. Sem nem ao menos murmurar aceitamos o congelamento dos gastos públicos em educação e saúde por
20 anos.
Também
testemunhamos calados a intervenção militar no Rio de Janeiro. Pela televisão fomos
informados sobre o assassinato de uma vereadora de oposição na mesma cidade
que está sob o controle do exército. Depois
passivamente vimos a prisão de um ex-presidente.
Para
piorar... a reforma previdenciária está na pauta do Congresso. E alguns candidatos
à governo de estado sinalizam com uma nova rodada de privatizações.
Você
sabe quando coisas assim aconteceram pela última vez? Quando os tanques tomaram
as ruas de nossa capital. Quando aviões ameaçaram bombardear cidades que
resolvessem resistir* ...
A
panela ainda não ferveu... As tropas ainda não estão nas ruas.
Até
quando iremos esperar sem fazer nada?
Será
que somos como os siris?
* Porto Alegre esteve sob a ameaça de bombardeio durante
a Campanha da Legalidade (setembro de 1961), episódio em que Leonel Brizola,
então governador gaúcho, liderou um movimento de resistência à tentativa de golpe
contra a posse de João Goulart como presidente do país.
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