terça-feira, 27 de agosto de 2019

"O Conto da Aia" e a Distopia Bolsonarista


O CONTO DA AIA” E A DISTOPIA BOLSONARISTA

Alguns anos atrás, um dos candidatos ao governo do estado do Rio Grande do Sul, Ivo Sartori (do MDB) foi questionado sobre como ele procederia com relação ao Piso Nacional dos professores, como resposta Sartori afirmou “Quem quer piso deve ira ao Tumelero”. Tumelero, uma importante rede de materiais de construção, recebeu uma importante propaganda gratuita do emedebista. E muitos defenderam Sartori afirmando que ele estava só brincando.

Quatro anos depois, Sartori não seria reeleito e deixaria o governo gaúcho. Durante este período os professores da rede estadual não receberam nenhum aumento salarial, nem sequer reposição da inflação, e o salário base não chegou nem perto do Piso Nacional, ao contrário, aproximou-se, e muito, do salário mínimo. Infelizmente não havia brincadeira nenhuma nas palavras de Sartori.

Mas minha intenção neste texto não é falar sobre Sartori. Prefiro escrever sobre ficção, na verdade, uma ficção das boas. Por isso, vou escrever sobre uma série que está na terceira temporada: The Handmaid’s Tale ou, em português, O Conto da Aia. Série baseado no livro homônimo de Margareth Atwood. Por sinal, um grande livro, que contrariando a regra de que “o livro é melhor que o filme”, a série consegue a proeza de ser melhor que o livro.

O Conto da Aia é uma distopia. Distopias são um subgênero muito popular da ficção-científica e são o oposto das utopias, isto é, se uma utopia é um mundo futuro perfeito, as distopias são realidades futuras terríveis. Como ouvi certa vez, “as distopias são as utopias que não deram certo”. E O Conto da Aia é um destes casos.

Em O Conto da Aia somos apresentados a uma sociedade norte-americana distópica. Na trama, a maior parte dos seres humanos se tornaram inférteis. Sem ter certeza dos motivos que levaram ao despencar das taxas de natalidade, alguns grupos afirmam que o problema é resultado da crescente poluição, outros culpam as doenças venéreas.

Em meio a uma sociedade em colapso, o governo dos Estados Unidos cai, abrindo brecha para que um novo governo se instalasse. Os Filhos de Jacó, partido religioso ultra-conservador, toma o comando da nação, mudando até o nome do país para República de Gilead.

Entre as primeiras medidas do novo governo está a retirada de todos os direitos civis e políticos das mulheres. Somente os homens poderiam circular livres pelas ruas. Segundo os Filhos de Jacó, a medida era para proteger as mulheres do que quer que estivesse causando a infertilidade delas, já que para os religiosos, a infertilidade atingia somente às mulheres.

Mas o que choca não é isso.

Em decorrência da baixa fertilidade, mulheres férteis acabaram sendo escravizadas e entregues aos líderes do partido radical-religioso que estava no poder, objetivo: dar filhos aos líderes do governo. Tudo isso ocorrendo com a participação das esposas destes homens. As aias, como foram chamadas as escravas de procriação, passaram a ser constantemente estupradas em cerimônias religiosas realizadas nas casas em que estavam aprisionadas.

Para piorar, após darem à luz, elas eram separadas dos filhos e entregues a outra “família” para novamente serem estupradas, num ciclo que duraria todo o seu tempo de fertilidade.

Entretanto, a distopia apresentada em O Conto da Aia não foi algo que foi imposto da noite para o dia. Pelo contrário, conforme a trama nos apresenta revelações sobre o passado, entendemos que as pequenas mudanças que foram sendo impostas à sociedade norte-americana ocorreram de forma bastante gradual. Sem que a maioria das pessoas se dessem conta do que estava acontecendo, mudanças sociais foram sendo colocadas em prática.

Por esse motivo, ninguém pensou em fugir. Ninguém desconfiou das más intenções do partido Filhos de Jacó.

Na verdade, conforme as coisas aconteciam, muitas pessoas achavam graça ou até gostavam das propostas do novo governo. Como quando as mulheres foram proibidas de acessar suas contas bancárias, só os maridos poderiam manipular as contas. Com isso, mulheres solteiras ou viúvas tiveram suas contas bloqueadas. Mesmo assim, muitas pessoas mantiveram o apoio ao novo governo.  

Claro que quando a “corda apertou pra todos” era tarde demais.

É impressionante como nós somente percebemos o problema quando ele nos atinge.

Com exceção dos membros do partido no poder, todos os demais perderam os seus direitos civis e políticos. Milhares de pessoas foram enviadas à campos de trabalhos forçados. E, como já vimos, as mulheres férteis tornando-se escravas sexuais.

Não vou revelar mais nada sobre a série, mas se você ficou curioso, te garanto, The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia) é uma série imperdível que deveria ser assistida por todas as pessoas. Só para se ter uma ideia da qualidade da série, o programa já venceu dezenas de prêmios, entre eles estão 8 Emmys Awards e 2 Globos de Ouro.

Por que escrevo sobre esse assunto?

Por que eu acredito que já estamos vivendo numa distopia.

Mas que fique claro: eu não acredito que estejamos indo na direção da distopia apresentada em O Conto da Aia. Nosso problema é diferente, mas com resultados tão desastrosos quando os da série.

Você já ouviu algum pronunciamento de Jair Bolsonaro (ou de algum de seus ministros)? Já ouviu as ideias que eles têm sobre Meio Ambiente, Educação, Saúde, Segurança, Armamentos, Transporte, Sexo... A maioria das afirmações, se não fossem assustadoras, pareceriam piada. E muito dizem: “ele tá brincando”.  Brincando? De quê? De ser presidente? Eu é que não quero participar dessa brincadeira!!!

Tipo quando ele debochou da primeira dama francesa, Brigitte Macron. Muitos afirmaram que era brincadeira. Brincadeira? Com o quê? Com a aparência ou com a idade dela? Não entendo onde está a brincadeira!!! Por isso te pergunto: e se fosse contigo? Ou com a tua esposa? Ou com a tua mãe? Ou quem sabe, com tua filha?

Se quisermos avançar na direção inversa de uma distopia, precisamos urgentemente nos tornarmos mais empáticos e menos “engraçados”.

Por isso, comecei com a história do piso no Tumelero. Onde não havia piada nenhuma sendo contada.

Não sei se sou só eu, mas tá dando uma forte vontade de sentar num cordão de calçada qualquer... e chorar...

Marcos Faber
Professor de História

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