terça-feira, 22 de março de 2011

As Praias do Norte de Florianópolis, Martinho Lutero, Karl Marx e a alienação


O litoral de Santa Catarina é demais! Florianópolis então, nem se fala! No último verão passei alguns dias no norte da ilha, mais precisamente em Canasvieiras, mas também andei por Ingleses, Daniela, Juererê, Santinho e Praia Brava. Aproveitando ao máximo os poucos dias de férias que tive no litoral de Floripa.
Mas como sempre que estou na praia, choveu boa parte dos dias.
Num destes dias chuvosos fui até a praia em Canasvieiras.  A praia tem esse nome porque muito tempo atrás havia no local um canavial, onde o senhor Vieira cultivava cana-de-açúcar. Entenderam? Canas Vieiras! Lá me sentei na areia, olhando para o mar. O lugar é lindo. A praia esvaziada pela chuva proporcionava um ambiente perfeito para a contemplação da natureza.
Canasvieiras fica no extremo norte da ilha o que lhe proporciona um o mar calmo e sem ondas, perfeito para nadar e para a prática de esportes contemplativos como caiaque, canoa e passeios a barco. Curiosamente a calmaria do mar se reflete nas pessoas que habitam o balneário, todas muito calmas e tranquilas.
Alguns dias depois, novamente num dia de chuva (argh!), fui até a praia de Ingleses. O balneário recebeu esse nome em razão de um navio inglês ter ficado encalhado no local por muito tempo, o destino do navio ninguém sabe precisar, mas o nome da praia ficou. Neste dia, novamente aproveitei a chuva para uma caminhada na areia. Ingleses, que fica de frente para o oceano, tem um mar violento, com grandes ondas. O cenário é perfeito para esportes radicais. Tanto que mesmo com a chuva existiam muitos surfistas na água.
Eu sentei na areia e fiquei observando. Mas curiosamente não tive a mesma paz de espírito que tivera em Cansvieiras. Em Ingleses, observando o furioso mar, tive uma experiência reflexiva. Era impossível observar aquelas águas bravas e não me questionar sobre a ação humana sobre a natureza.
Mexido pela paisagem e a violência do mar, eu meditava sobre como o homem dominou e transformou a natureza de acordo com seus interesses. Mesmo naquelas belas praias a ação do homem era visível nas construções da orla, nas casas, na pavimentação e, principalmente, na poluição. É lastimável que ao mesmo tempo em que se apropriou da natureza, o homem a tornou alienada de seu propósito original.
Foi então que pensei no que Karl Marx afirmou ser a alienação da natureza. Para ele, a sociedade havia afastado a natureza de sua função original, transformando-a em mera fornecedora de matéria-prima. Ao se apropriar da natureza, o homem havia transformado o meio ambiente em um mero fornecedor de riquezas, retirando dele sua harmonia e funções naturais. Com isso, o homem havia alienando a natureza.
Marx também escreveu sobre a alienação do ser humano. Para ele, quando alguém vende sua força de trabalho ou seu intelecto para um patrão, está abrindo mão de fazer o que deseja para realizar o que o empregador lhe ordena. Ao trocar sua força de trabalho ou seu intelecto por um salário, o homem esta se alienando, ou seja, ao realizar um trabalho remunerado, o homem deixa de ser dono de si mesmo para pertencer ao patrão, ao menos enquanto realiza a tarefa para o qual é pago. Marx chamou esse processo de alienação.
Pensando sobre isso, lembrei-me da história de um monge alemão que também havia passado por um conflito parecido.
Martinho Lutero nasceu na cidade de Eisleben, na Alemanha, em 1483. Nesta época, ao contrário de outras regiões da Europa, a Germânia vivia em uma grave crise econômica e social. A região era acossada por hostes turcas que vinham do leste ameaçando invadir o país. Mas não era só isso, também havia grande fome na região devido a uma sequência de más colheitas. Como desgraça pouca é bobagem, o papa Leão X enviara à província padres com o objetivo de vender indulgências, documentos assinados pelo pontífice que garantiam ao comprador o perdão de seus pecados.
Lutero, um monge agostiniano, que dia-a-dia presenciava a agonia do povo, não podia concordar com a cobrança das indulgências. Com isso, escreveu suas famosas 95 Teses, nelas o monge defendeu a ilegalidade das indulgências afirmando que o perdão de pecados somente poderia ser alcançado pelo arrependimento genuíno e pela fé pessoal em Deus.
Ao afirmar que a fé é responsável pela aproximação do fiel com Deus, Lutero criou o ambiente para que os homens de sua época tivessem acesso a uma libertação religiosa inédita. A pregação de Lutero possibilitou que os homens se desprendessem da alienação religiosa. Pois para ele, o catolicismo havia transformado uma fé simples em Deus, numa religião altamente complexa que afastava os homens do propósito original do cristianismo, ou seja, “amar a Deus acima de todas as coisas e amar ao próximo como a si mesmo”. Ao contrário dos católicos, que se preocupavam em apenas observar os mandamentos, os seguidores de Lutero defendiam que o que realmente importava não era obedecer por obedecer, mas internalizar a Palavra de Deus, transformando-a em uma prática diária. Era o nascimento da ética protestante.

A ação de Lutero libertou os cristãos da religiosidade medieval, dando-lhes acesso direto a Deus por meio de sua fé, anulando a intermediação da Igreja. Para o monge alemão era mais importante uma fé legítima e pessoal do que a dependência de uma hierarquia eclesiástica que somente dizia aos homens como deveriam se comportar.
Lutero retirou o homem medieval de sua alienação religiosa, dando-lhe liberdade de decisão e pensamento. Curiosamente Lutero rompeu com a religião mantendo sua fé intacta. Pois o monge entendia que a religião era apenas um instrumento de controle social, se a sociedade era formada por homens corruptíveis, a religião também era. Por outro lado, a fé era pessoal e intransferível e, desde que sujeita a Deus, garantia ao indivíduo a liberdade de pensamento. Com isso, o homem passava a ser o responsável por suas próprias decisões, independentemente do que dizia a Igreja Romana.
Como resultado de sua ousadia, Lutero foi considerado herege e excomungado da Igreja pelo papa Leão X. Mas o estrago já havia sido feito. A Igreja Cristã nunca mais seria a mesma.
Mas voltando a história inicial.
Na areia de Ingleses eu fiquei refletindo sobre tudo isso. Se em Canasvieiras eu havia apenas contemplado a natureza, em Ingleses eu questionava o que nós, seres humanos, estamos fazendo com ela. Minha reação em Ingleses foi parecida com a que diferenciava Lutero dos outros monges europeus de sua época. Se na Espanha, França e Itália os monges viviam em mosteiros, afastados da população comum, na Alemanha os monges viviam junto ao povo. Por isso, ao contrário de seus pares de outras regiões, Lutero entendia sua geração como nenhum outro religioso poderia entender. Da mesma forma eu experimentava, em Ingleses, a reflexão crítica e me questionava sobre o que estamos fazendo com a natureza. Nas cidades, onde pouco nos resta do meio ambiente natural, agimos como se a natureza tivesse o propósito único de nos servir, quando na verdade nós, seres humanos, somos parte inseparável dela.
Acredito que está no exemplo de Lutero a solução para resgatar a função original da natureza. Se como Lutero, estivermos identificados com o problema dos oprimidos, no nosso caso o meio ambiente, seremos transformados por ele e não o contrário. E, somente assim, entenderemos que somos parte da natureza e não seus proprietários.
Marcos Faber

terça-feira, 1 de março de 2011

O Reino dos Francos, Cazuza, Karl Marx e a ideologia


Numa certa manhã do século VI, o grande Clóvis, rei dos francos, acordou inquieto, chamou seu cavalariço e, antes do desjejum, cavalgou até a montanha mais alta de seu reino. De lá o rei pôde observar as mais longínquas fronteiras de seus domínios. Clóvis havia lutado muito para unificar as várias tribos germânicas que agora estavam sob seu comando.
Mas Clóvis sabia que faltava algo.
O reino dos francos era como uma muralha feita de pedras sobrepostas, porém, sem que houvesse argamassa que solidificasse o muro. Assim, se algum dos tantos inimigos arremetesse contra os francos, o muro ruiria. Clóvis sabia que a exemplo da muralha, as diversas tribos bárbaras que estavam debaixo de sua autoridade poderiam se desunir a qualquer momento. Clóvis necessitava criar algo que não só legitimasse seu domínio, mas que garantisse a união entre as tribos francas.
Nos anos 1980, um jovem músico brasileiro chamado Cazuza tinha a mesma inquietação de Clóvis.
Cazuza vivia numa sociedade muito mais complexa do que a do rei franco. Na época de Cazuza, a sociedade de consumo já dominava o país. O consumismo passava a ser quase uma religião, com a economia mundial girando em torno dela. Consumir se tornou status, quanto mais consome, mais importante é o individuo na sociedade. Porém, o principal malefício da sociedade de consumo está na alienação. Principalmente dos jovens que perdem a perspectiva sobre o futuro e passam a viver somente o presente.
Foi dentro desta perspectiva alienante, que Cazuza escreveu uma das músicas de maior importância para o cenário musical brasileiro dos anos 1980. “Ideologia” era uma crítica aos jovens daquele tempo. Apesar da origem burguesa, Cazuza conhecia a juventude brasileira dos anos 1960 e 1970, uma juventude que tinha protestado contra a ditadura, que havia lutado em guerrilhas e que buscava uma alternativa para o país. Mas ele também sabia que essa juventude tinha sofrido severas represálias por conta de tudo isso. Os jovens daquela época, mesmo que fossem a minoria, tinham suas convicções e lutavam por elas.
Ciente disso, Cazuza cantava de forma melancólica “ideologia, eu quero uma pra viver”, pois identificava na juventude brasileira dos anos 1980 uma alienação política muito perigosa para o futuro do Brasil. Para ele, os jovens de seu tempo, não tinham as mesmas convicções das épocas anteriores. Não lutavam por um mundo melhor, apenas se deslumbravam com o mundo que tinham pela frente. Os jovens brasileiros dos anos 1980 agonizavam pela falta de ideais de futuro e apenas aceitavam o mundo como ele era.
Mesmo assim, a música logo chegou ao topo das listas de rádios e programas televisivos. Muitos brasileiros cantarolavam o refrão, mesmo sem entender o real significado do que cantavam.
Outra pessoa que escreveu sobre a importância da ideologia foi Karl Marx.
No século XIX, Marx escreveu um livro ao qual batizou de “A Ideologia Alemã”, nele o pensador alemão afirmou que existe uma força invisível capaz de controlar a sociedade. Força esta que age nos fazendo acreditar que pensamos por nós mesmos, quando na verdade nossos desejos e ideias procedem desse poder que nos faz pensar de acordo com o que ele quer que nós pensemos. Esse poder, que é social, Marx chamou de ideologia.
Mas Marx não parou por ai, o pensador alemão afirmou também que sempre que a ideologia apresenta deformidades ou desgastes, torna-se necessário buscar uma alternativa, surgindo a oportunidade para o nascimento de uma nova ideologia.
Mas, voltando à história inicial. Lá do alto da montanha, Clóvis teve uma brilhante ideia que mudou a Europa e a civilização Ocidental para sempre. Clóvis percebeu que o cimento que uniria as diversas tribos germânicas debaixo de sua autoridade era a religião cristã e seu severo código de ética.
Até essa época os francos ainda cultuavam uma grande diversidade de deuses, em sua maioria deuses tribais. Cada uma das tribos germânica tinha seu deus protetor e obedecia a tradição de leis ancestrais. Clóvis percebeu que se os francos cultuassem um só deus, um deus que os unisse em sua devoção, eles aceitariam melhor a ideia de servirem a um só rei e, assim, a um código de leis unificado.
Um só deus, um só rei.
Foi dessa forma que Clóvis selou sua aliança com o papa e a Igreja Católica. O rei franco foi batizado, assim como todos os seus generais, e o cristianismo tornou-se a religião oficial do reino. Essa aliança representou o nascimento do maior de todos os reinos cristãos da Idade Média.
Sem que os chefes tribais percebessem, Clovis criou um forte aparelho de Estado que possibilitou a construção do Império Merovíngio que, anos depois, se transformaria no Sacro Império Romano, o maior império do mundo Ocidental desde Roma.
Clóvis não deixou passar a oportunidade e agiu transformando um pequeno reino no maior império de sua época.
Hoje (março de 2011), assistimos pela internet, rádio, jornais e televisão à queda de uma série de ditadores no mundo islâmico (Mubarak no Egito, Kadafi na Líbia e Ben Ali na Tunísia), tiranos que estavam no poder por décadas. Mas a derrubada desses regimes não ocorreu de uma hora para outra, foram necessários anos de preparação. Os movimentos reformadores vinham sendo construídos havia tempos, arregimentando milhares de seguidores ano a ano, principalmente entre os jovens (sem dúvida a maioria dos manifestantes). Jovens que lutam por um futuro melhor para si e para seus países, não aceitando mais a ausência de liberdade e a inexistência de participação política.
Mas e no Brasil?

Como afirma a música de Cazuza, será que nossas “ilusões estão todas perdidas”? Nossos “sonhos foram todos vendidos”? Afinal, “aquele garoto que ia mudar o mundo; agora assiste a tudo em cima do muro”.
O que faremos a respeito?

Marcos Faber